“Os Últimos Melhores Dias da Minha Vida” chega às livrarias na próxima segunda-feira, 9. Obra póstuma do jornalista e educador Gilberto Dimenstein relata como foi o processo de descoberta do câncer no pâncreas, os altos e baixos do tratamento, relação com a família e de como, nas palavras do próprio autor, “o câncer se tornou a chance de eu matar o antigo Gilberto Dimenstein e fazer nascer uma versão melhor de mim mesmo.”
O livro foi escrito a quatro mãos, ao lado de sua esposa Anna Penido que conta sobre o processo em relato ao TEDx:
Gilberto Dimenstein foi idealizador e fundador da Catraca Livre, em sua homenagem disponibilizamos aos leitores o primeiro capítulo de “Os Últimos Melhores Dias da Minha Vida”.
DIAS DE TATURANA
“Você está com câncer.” A notícia me chegou através de um sonho. Justo para mim, que sempre desconfiei desse tipo de coisa. A minha formação foi rigorosamente científica, lógica, matemática. Eu só acreditava em alopatia, estatísticas, grupos de controle. Para mim, a ciência é extraordinária justamente por sua capacidade de provar, de usar métodos racionais para gerar evidências e certificar a verdade. E, de repente, um sonho se antecipa a todas as tomografias.
Foi uma coisa muito rápida. A mulher aparecia de corpo inteiro, vestida com uma roupa escura, mas eu só me lembro do seu rosto iluminado, que se aproximava aos poucos de mim. Era jovem, mas não muito. Não parecia um ser etéreo, mas uma médica confiável, apresentando um diagnóstico. Tive a sensação de que ela conhecia alguma coisa que me era desconhecida e de que traduzia algo que eu precisava saber. Ela transmitiu a mensagem de forma bastante clara. Depois, desapareceu.
Apesar de todo o meu ceticismo, acreditei na “médica” do sonho, porque já tinha vivido situações parecidas. No final da década de 1970, durante o regime militar, eu participava de um grupo trotskista com colegas da universidade. Estávamos na última fase da repressão, já tinham matado o Vladimir Herzog, jornalista como eu. Uma noite, sonhei com meu avô Marcos, morto muitos anos antes. “Foge de São Paulo! Foge de São Paulo já”, ele me alertava.
De manhã, fui para a faculdade sem dar muita atenção ao sonho. No caminho, topei por acaso com um colega do grupo. Ele me pediu ajuda para “limpar” a sua casa, porque “todo mundo estava caindo”. Ou seja, queria eliminar os vestígios das nossas discussões, porque tínhamos sido denunciados. Eu me senti muito mal de negar ajuda, mas pedi desculpas e disse que não poderia acompanhá-lo. Ele foi para casa sozinho e acabou sendo preso. Mais tarde, descobri que tinham me entregado como líder do movimento. Logo eu que nem sabia ao certo o que estava fazendo ali.
A decisão de participar daquele grupo trotskista teve um propósito mais social do que socialista. Era uma oportunidade de estar com os amigos, de me aproximar das meninas. Nunca acreditei em comunismo. Sempre defendi a igualdade, mas não compactuava com a ideia de um Estado opressor. Então, Trotsky me pareceu uma alternativa mais sofisticada. Além disso, era uma vítima da opressão, já que tinha sido assassinado a mando de Stalin.
Mas a minha brincadeira subversiva acabou logo após aquele sonho traumático, pois tive mesmo que fugir de São Paulo e largar tudo para trás, inclusive o curso de Ciências Sociais na PUC e o de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero. Naquele mesmo dia, meu pai foi me deixar na estação ferroviária, porque eu achava arriscado viajar de ônibus. Na plataforma, vivi uma daquelas situações horrorosas, em que se é tomado pelo medo. Eu tinha 20 e poucos anos, era muito menino, fiquei sem chão. Já tinha ouvido todos aqueles relatos sobre tortura, entrei na paranoia. Foi um tempo muito difícil.
O sonho com a “médica” teve mais impacto porque me lembrou do sonho com o meu avô Marcos, que sempre foi a minha principal referência de acolhimento e proteção. Acabei levando o aviso a sério, mesmo tendo aparecido em um momento em que gozava de uma condição física invejável. Havia algum tempo vinha tomando uma série de decisões que priorizavam a minha saúde.
No início da minha carreira, adotei o kit básico de todo jornalista daquele tempo e, além de fumar, passei a abusar muito da bebida. Não cheguei a ser alcoólatra, mas, lá para as tantas, percebi que perdia o controle. Nos finais de semana, começava a beber antes do meio-dia. Daí por diante, tudo que fazia era acompanhado de bebida — jantares, festas, eventos de trabalho.
Como eu tinha transtorno de ansiedade e não tomava remédio, o álcool criava uma aparente sensação de alívio. Era um prazer imenso acordar cedo, tomar café e, em seguida, beber um Jack Daniel’s. Anos depois, abandonei o bourbon e continuei abusando do vinho. Não bebia para degustar, mas para me encharcar. Tomava logo três, quatro taças em cada refeição. Lembro de estar sempre alto, em alguns períodos mais do que em outros. Mas, quando o entorpecimento passava, o efeito era devastador. Acordava no meio da noite e não conseguia mais dormir. Meu estômago estava sempre estourado.
Eu caminhava bastante, mas nunca fui de praticar ginástica ou atividades esportivas. Era um fracasso neste quesito. Aliás, para ser bem honesto, sempre tive um pouco de desprezo por quem fazia esporte. Achava que era desperdiçar um tempo que poderia ser mais bem utilizado com leitura e estudo. Para mim, essa coisa de ficar sarado era uma bobagem. No meu imaginário, você não podia malhar e, ao mesmo tempo, ser um cientista que inventa a cura do câncer ou um escritor que publica um livro importante.
Fui criado em um ambiente de judeus intelectuais e não conseguia imaginar caras como Sigmund Freud, Karl Marx ou Walter Benjamin malhando. Só conseguia vê-los barbados, de óculos, carecas ou despenteados. O Albert Einstein dizia que uma vida que não enriquece o outro é uma vida desperdiçada. Eu não só concordava com ele como dividia as pessoas entre aquelas que faziam coisas que eu considerava “relevantes” e as que não faziam coisas “relevantes”.
No grupo dos “relevantes”, incluía as pessoas que passavam a sua existência em um laboratório ou biblioteca, escrevendo, produzindo coisas inesquecíveis na ciência, na medicina, na literatura, no teatro. Gente como Alexander Fleming ou Albert Sabin, que conheci quando veio ao Brasil. Os malhadores não faziam parte dessa categoria. Não digo que estou certo, mas era assim que pensava. Por isso, o esporte não fazia parte da minha vida, nem como espectador.
Quando o sonho apareceu, teve um impacto muito grande, mas, ao mesmo tempo, parecia tão despropositado, porque eu já tinha parado de fumar havia décadas e estava abstêmio fazia mais de seis anos. Não bebia uma gota de álcool, não tomava café, nem comia carne vermelha. Eu precisava apenas diminuir o consumo dessas coisas, mas, como não era um cara equilibrado, preferi cortar logo tudo. Também nunca fui natureba, mas me alimentava de forma saudável.
Mais recentemente, tinha comprado uma bicicleta. Era elétrica — para que conseguisse subir as ladeiras do meu bairro, a Vila Madalena —, mas daquelas que você tem que pedalar. E eu pedalava por horas, com um desempenho cada vez melhor. Andava por toda São Paulo. Aproveitava as ciclovias, ia para a Avenida Paulista, seguia até o bairro do Jabaquara — que é longe pra burro — e voltava sem cansar.
Para completar, tomei uma decisão inusitada. Um dia, tive dificuldade de carregar meu neto e percebi que não era ele que estava mais pesado, mas eu que ficava cada vez mais fraco. Contra todas as minhas promessas em contrário, resolvi fazer musculação com uma personal trainer. Era uma profissional especializada em terceira idade, já que eu não tinha pretensão de ficar sarado aos 62 anos. Comecei a treinar uma vez por semana e, logo em seguida, estava treinando todo dia.
Os médicos me diziam que, depois de uma certa idade, perde-se muita massa magra e é preciso compensar. De fato, a musculação me fez redescobrir um potencial físico que não imaginava mais ter. A barriga diminuiu, meus braços e pernas ficaram fortes, e eu pedalava com mais vigor. Já subia algumas ladeiras de bicicleta sem precisar usar o motor. Voltei a caminhar e a carregar meu neto com desenvoltura. Era como se tivesse deixado a velhice de lado em poucos meses.
Ironicamente, depois de tantas críticas, acabei virando uma espécie de “malhador”. O que posso dizer, em minha defesa, é que não tinha nenhuma vaidade, nem queria ter músculos para usar camiseta apertada. Com o avanço da idade, fui ficando mais cansado e comecei a me deparar com a fragilidade da vida. Senti que minhas possibilidades diminuíam e não queria perder a vitalidade que me ajudava a realizar meus projetos. Tive a clara sensação de que meu corpo era um templo e que precisava cuidar dele para manter a minha mente ativa. Eu tinha um propósito que me ligava à vida, por isso a vida não podia ser desperdiçada.
Enfim, quando o sonho chegou, eu estava no auge da minha saúde. Não sentia absolutamente nada, além do eterno combo de pessoa ansiosa — refluxo, gastrite e esofagite. Tinha feito checkup dois meses antes — endoscopia, colonoscopia, ultrassonografias, exames de próstata, coração, tudo que o plano de saúde paga. Os médicos eram taxativos em dizer que não tinha nada, que “estava limpo”. A sensação de bem-estar físico também continuava, mas o sonho tinha mexido comigo. Foi aí que aconteceu uma daquelas coincidências inexplicáveis.
Meu médico tinha viajado de férias e resolvi procurar um especialista, ao invés de esperá-lo retornar. A sorte só aparece quando você está em movimento. A frase tem cara de autoajuda, mas foi uma das grandes lições que aprendi com a vida. Sem perda de tempo, resolvi me movimentar e acabei parando no consultório de um cirurgião gástrico chamado Frederico Teixeira. Só mais tarde, descobri que ele era especializado em cirurgias oncológicas. Relatei a minha preocupação, e o médico pediu que fizesse uma tomografia para descartar a dúvida.
Consegui marcar o exame para as 22 horas daquele mesmo dia e me dirigi ao hospital sozinho, confiante de que não tinha nada, de que tudo não passava de um sonho ruim. Terminei a tomografia e me pediram para aguardar em uma sala de espera já completamente vazia. Fiquei um bom tempo sozinho naquele cômodo imenso. Acho que era a única pessoa em todo o andar. A demora foi me deixando inquieto. Geralmente, liberam a gente logo depois do exame, e eu me perguntava o que poderia estar me prendendo ali.
Finalmente, um enfermeiro desceu e disse que eu tinha que ir ao pronto atendimento tomar uma injeção para dor, porque estava com pancreatite. Garanti a ele que não sentia nada e me recusei a fazer qualquer procedimento sem a orientação do meu médico. No táxi de volta para casa, consultei o Google e li que pancreatite costuma dar em quem bebe ou tem problema na vesícula. No entanto, além de ser abstêmio, eu também já tinha tirado a vesícula. Como sou daquelas pessoas que usam a internet o tempo todo, cometi a grande bobagem de continuar pesquisando, desta vez sobre câncer de pâncreas. As informações que encontrei foram aterradoras. Uma doença letal, que só tem tratamento paliativo e mata os pacientes em um período de um mês a, no máximo, um ano. Evidentemente, os dados não eram precisos, mas tomei um choque ao imaginar que, de fato, poderia estar com um tumor maligno.
Quando cheguei em casa, Dr. Frederico já tinha sido avisado pelo hospital do resultado do exame e confirmou a possibilidade do meu sonho ter fundamento. Por mais estranho que pareça, não reagi com desespero. Dizem que, ao receber esse tipo de notícia, a pessoa passa por três fases: a negação, a rebeldia e a resignação. Eu já estava resignado. A minha cabeça continuava lá no Google: “Mais um mês.” Comecei a pensar na distribuição dos bens para a família.
No dia seguinte, retornei ao hospital para fazer uma ressonância magnética que confirmou o resultado da tomografia. Só voltei para casa dez dias depois, quando tive alta da cirurgia que extraiu o meu tumor. Era um adenocarcinoma localizado na cauda do pâncreas e foi retirado bem no comecinho, algo muito raro, porque esse tipo de câncer costuma ser assintomático e, quando descoberto, já estar em estágio avançado. O sucesso da operação nos encheu de otimismo, assim como o sonho, considerado um verdadeiro “milagre” justamente por ter avisado da doença ainda no início. Agarrei-me nessa história como um sinal de que tinha chance, de que havia possibilidade de cura.
Passei a ser tratado pelo Dr. Paulo Hoff, um dos melhores oncologistas gastrointestinais do país. Para aumentar a minha esperança, já na primeira consulta, ele mencionou que eu começaria a fazer quimioterapia com uma medicação que tinha sido aperfeiçoada com recursos do governo francês e apresentava resultados animadores junto a pacientes em fase inicial de câncer de pâncreas. Segundo ele, no ano anterior, a droga havia sido uma das estrelas do principal congresso de oncologia do mundo, em Chicago, nos Estados Unidos.
Como nesse primeiro momento só tivemos boas notícias, nada me derrubava. Pensava ter tirado a sorte grande e sustentava a ideia de que estava curado. Acontece que, no meio do caminho, apareceu uma febre, melhor dizendo, uma febrícula, uma febrinha de nada. Pensei que era só tomar um antitérmico, mas os médicos acharam melhor irmos ao hospital. E aí, o que era para ser um atendimento de uma hora durou uma semana inteira. Eles não conseguiam descobrir o que estava provocando a elevação de temperatura, mas se mantinham positivos, achando que deveria ser uma infecção decorrente da cirurgia. Os antibióticos fizeram efeito, a febre e os marcadores de infecção baixaram, e eu já me animava para voltar para casa. Só que Dr. Paulo não se satisfez com os resultados dos exames e pediu uma biópsia.
Foi aí que o meu otimismo começou a se desmontar, porque os meus abscessos infecciosos, na verdade, eram tumores no fígado. Eu tinha metástase, e o que parecia um tratamento tranquilo se tornou bem mais complicado. Agora, precisava fazer uns três meses de quimioterapia até o câncer estacionar ou diminuir para, em seguida, retirar os novos carcinomas por meio de outra cirurgia.
A esta primeira pancada, seguiu-se logo uma segunda, quando, algumas semanas depois, recebemos a notícia de que a medicação “salvadora” não havia funcionado. Ao invés de diminuir, meus tumores continuaram a crescer. Voltamos à estaca zero. Foi aí que eu tive a clara sensação de que estava perdendo a guerra. E foi nesse momento, diante de todas estas derrotas, que começou o meu processo mais profundo de reflexão sobre a vida.
Sempre fui absolutamente louco por trabalho. Trabalhava da hora que acordava até a hora de dormir, inclusive nos finais de semana e feriados. Quando era diretor da Folha de S.Paulo, tirava férias para fazer reportagens investigativas sem que o cotidiano da redação pudesse me incomodar. Sempre inventava alguma coisa para fazer em meio às minhas viagens de lazer. Até em lugares como Nova York, em que me sentia muito relaxado, eu inventava tarefas, articulava projetos, mandava matérias que ninguém estava esperando. Era uma coisa obsessiva, sem controle.
As minhas conversas também eram funcionais. Só me interessava por assuntos de trabalho ou projetos sociais. Nem me passava pela cabeça sentar em uma mesa de bar para jogar conversa fora. Lia o tempo todo, viajava para várias partes do mundo, tinha passado temporadas na Universidade de Harvard e na Universidade Columbia, então estava sempre conectado com o que acontecia no mundo. Ao mesmo tempo, havia essa desconexão com as pessoas. Em encontros presenciais, eu logo me distraía. Meu olhar parava de acompanhar o interlocutor, e ele percebia que eu já não estava mais ali. Ao telefone, desligava a chamada antes de a pessoa terminar de falar, porque eu já estava desligado.
O meu déficit emocional era tão grande quanto a minha habilidade profissional. Eu fazia reportagens, escrevia livros, ganhava prêmios, mas era um zero à esquerda nos relacionamentos. Só conseguia me ligar às pessoas quando elas precisavam de mim. Me orgulhava de nunca ter deixado faltar nada a quem necessitasse da minha ajuda, mas mantinha uma certa distância da família e não tinha paciência para cultivar amizades. Era incapaz de aprofundar relacionamentos afetivos, porque isso significava ter de falar sobre sentimentos. Não percebia a riqueza das relações humanas.
Fui ficando muito acompanhado do ponto de vista profissional e muito sozinho no âmbito pessoal. Era uma vida pobre, uma vergonha, uma burrice. Percebia o que se passava, mas não conseguia mudar. Parecia que me faltava um software capaz de rodar emoções. Sentia-me um analfabeto emocional.
Para completar, tinha o tal transtorno de ansiedade e carregava comigo uma sensação permanente de ameaça. Sentia uma insegurança difusa, sem causa aparente, mas que me deixava o tempo todo em estado de alerta, como se uma tragédia pudesse acontecer a qualquer momento. Para mim, a ansiedade era uma espécie de câncer da alma, uma doença que me corroía por dentro e me deixava muito cansado. Eu me preocupava com tudo o tempo todo — se ia morrer, se meus filhos ou minha mulher iriam morrer, se o Brasil entraria em crise, se o mundo entraria em colapso. Vivia em função de um medo presente e da projeção do futuro.
O estresse era tamanho, que me fazia reagir com vômitos, gases, queimação. Por isso, sempre achei que teria câncer na região do estômago. Eu pensava: “Isso aí não vai resistir.” A origem da minha doença talvez seja outra, possivelmente uma predisposição genética, mas toda essa agitação deve ter provocado um impacto no meu corpo.
A ansiedade também me impedia de ter foco e se somava a uma boa dose de déficit de atenção. Eu era ligado e desligado ao mesmo tempo. Mas a principal consequência desse transtorno era me deixar afobado, mesmo que não tivesse qualquer motivo para afobação. Estava sempre em dívida com o tempo, meu maior inimigo. Não conhecia o prazer, nem conseguia apreciar, com calma, uma música, um filme, um livro, uma comida. A minha vida cultural também empobreceu. Parei de me dedicar à literatura — algo inimaginável. Só lia matérias e relatórios. O mesmo aconteceu com a música. Não acompanhava mais os lançamentos de jazz, os novos cantores. A minha relação com a arte se degradou.
A situação piorou quando eu e meus filhos criamos o site Catraca Livre e tive que entrar de cabeça no mundo da tecnologia. Ficava grudado no celular o tempo todo, monitorando a audiência a cada minuto, a cada segundo, até mesmo de madrugada. Acompanhava os seguidores, os comentários, os likes e deslikes no portal, nas redes sociais, no e-mail. Acordava às 4 horas da manhã já preocupado em ver as últimas notícias e mandar dicas para a redação. Ou seja, uma imbecilidade.
A minha psiquiatra, Fabíola Luz, dizia que, quando você elimina um vício, acaba cultivando outro. Tem pessoas que deixam a compulsão por comida, mas viram jogadores. Parei de beber, mas o celular assumiu o lugar da bebida. Em qualquer ambiente social, as pessoas vinham falar comigo, mas eu estava distraído com uma notícia qualquer, como se fosse a coisa mais importante do planeta. Lia até aquelas bobagens sobre celebridades que não faziam o menor sentido. O mundo digital acelerou ainda mais a minha alienação. A vida parecia integrada à realidade, mas era totalmente irreal.
Quando o câncer apareceu, percebi que não estava com medo de morrer. Não fiquei deprimido, não chorei, não me angustiei. Fiz um balanço da minha vida e, apesar de ter errado muito e feito muita cagada, no geral, se seguisse aquela definição do Einstein, eu podia ir embora sossegado. Montei várias organizações sociais, apoiei muitas causas relevantes, ajudei a promover os direitos de crianças e adolescentes, articulei diversos projetos para melhorar a minha cidade.
O que me preocupava era a reação que a minha morte causaria nas pessoas queridas, por isso tentava criar uma espécie de compensação, calculando quanto deixaria para cada um. A ideia de que todo mundo ficaria com algum apoio material me confortava. Também me afligia com o futuro da Orquestra Sinfônica Heliópolis, de educação musical do Instituto Baccarelli voltado para crianças e jovens da maior favela de São Paulo, que me encantava por seu nível de excelência e inclusão social. Havia assumido a presidência do conselho da Orquestra quando ela corria o risco de paralisar suas atividades por falta de recursos. Temia que a iniciativa voltasse a tropeçar se eu partisse naquele momento. Precisava de mais uns seis, sete meses para conseguir reorganizar o sistema de gestão da instituição e captar os fundos necessários para assegurar a sua sustentabilidade. As coisas não estavam organizadas nem no âmbito da família, nem dos projetos sociais, portanto eu precisava correr para dar conta do que seria o meu último gesto funcional.
Paralelamente, a minha cabeça já começava a sofrer uma grande reviravolta. Eu, que sempre tentei controlar o futuro, resolvi me render a ele. Uma atitude que me ligava ao conceito de surrender, palavra em inglês usada pelos budistas para descrever essa entrega incondicional ao que não podemos controlar. A mudança me trouxe um alívio enorme. Decidi que não iria viver em função das estatísticas do Google. Ainda tinha tempo de fazer algo relevante com a minha vida, e tive a clareza de que não poderia ir embora com aquele déficit emocional. Não poderia ir embora com aquele buraco. A partir de então, o câncer se tornou a chance de eu matar o antigo Gilberto Dimenstein e fazer nascer uma versão melhor de mim mesmo.
Chega às livrarias livro póstumo de Gilberto Dimenstein publicado primeiro em Catraca Livre
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